“Só não me chames de senhora, tá? Eu vou me
sentir meio velha.” Nessa breve interrupção, ainda quando eu apresentava o
Vestiário, foi quando percebi que precisaria me despir de formalidades na minha
primeira entrevista com uma personalidade política. Era uma quarta-feira, o
país ainda vivia a ressaca do segundo turno das eleições, e eu havia conseguido
alguns minutos para conversar com Luciana Genro, a candidata à presidência
responsável por trazer assuntos inéditos aos debates televisionados,
conquistando a simpatia de muitos eleitores nas redes sociais, e também
fora delas.
A entrevista fora marcada pela assessoria
em um café com ares retrô, comuns na região do Largo São Francisco, no centro
de São Paulo, onde fica a faculdade de Direito da USP. Lá, a gaúcha faz
mestrado em direito.
Luciana
chegou pontualmente às 15 horas, e já demonstrando logo de cara um frescor
diferente ao ar cansado algumas vezes visto no primeiro turno. Quando nos
encontramos pela primeira vez, cerca de um mês antes, em um bate-papo dela com
personalidades feministas – como a filósofa Marcia Tiburi, as cantoras Marina
Lima e Karina Buhr, e as escritoras Clara Averbuck e Aline Valek – sobre o
protagonismo das mulheres, na Vila Madalena, ela não mediu esforços para conversar
com todas que iam até ela. Além da pauta política, Luciana também respondeu
efemérides como quais produtos usava para manter os cachos e tirou várias fotos
com eleitoras mandando beijinhos no ombro.
Na
época, Genro seguia uma agenda intensa de compromissos e mantinha, apesar da
simpatia, um olhar abatido e preocupado. Neste reencontro, ela trocou o formal
tailleur por uma saia longa e camiseta preta, colar de miçangas e uma mochila
com estampa étnica. Ela transparecia vigor e despreocupação.
Luciana
Genro começou na política aos 14 anos, com um discurso no Dia Internacional da
Mulher, quando entrou no movimento estudantil nos tempos do colégio Júlio de
Castilhos, em Porto Alegre. Foi eleita pela primeira vez deputada estadual em
1994, aos 23 anos, quando já era mãe de Fernando Marcel Genro Robaina, então
com seis. Possui dois mandatos como deputada federal pelo Rio Grande do Sul,
entre 2003 a 2011, e participou ativamente da fundação do PSOL em 2005, após o
rompimento com o PT quando se juntou à ala do partido descontente com alguns
posicionamentos do então governo Lula.
O
Partido Socialismo e Liberdade, mesmo tendo sido criado há menos de uma década,
já deixou a sua assinatura positiva no cenário nacional. Esteve presente quando
o povo foi às ruas em 2013 e em ações políticas como na CPI das Milícias, no
Rio de Janeiro, e nas CPIs da Dívida Pública, do Trabalho Escravo e do Tráfico
Humano. Além disso, ficou marcado pelas participações emblemáticas de seus
presidenciáveis durante as duas últimas campanhas eleitorais. Em 2006, com
Heloísa Helena e seus 6,85% dos votos, e em 2010, quando Plínio de Arruda
obteve 1,5%, ambos no primeiro turno. Mas a impressão que se tem, é que o PSOL
saiu mais fortalecido e mais pop este ano. E parte disso parece ser responsabilidade
de Luciana Genro.
A reação de Feliciano está diretamente
ligada ao crescimento do orgulho LGBT no país
Ela
foi o primeiro caso de presidenciável a levar, de forma coerente, as pautas de
interesse da população LGBT aos debates. E não apenas por ser uma consequência
natural ao posicionamento de políticos conservadores como o extremista Marcos
Feliciano, que em 2013, enquanto presidia a Comissão de Direitos Humanos na
câmara de deputados, tratou com desprezo todo um grupo social. Mas também por
uma visão pessoal. “Foi um momento político importante, houve uma disputa muito
forte em torno do tema LGBT, basicamente pelas posições reacionárias que ele
tomou”, explica. A reação de Feliciano está diretamente ligada ao crescimento
do orgulho LGBT no país, “com as marchas que tomam as ruas do Brasil a cada ano
com milhões de pessoas, trazendo uma simpatia de uma parcela importante da
população que não é LGBT, mas que está disposta a apoiar”, pondera. Em São
Paulo, por exemplo, segundo dados da SPTurismo, a Parada, que contou com sua
18ª edição este ano, é o evento que mais atrai turistas à cidade, já chegando a
reunir mais de 4 milhões de pessoas na Avenida Paulista.
Contudo, incluir a pauta LGBT não foi o
ponto principal quando, junto ao PSOL, Luciana Genro começou a organizar a sua
candidatura. Seu maior objetivo era trazer à tona a questão econômica, mas de
uma forma que as outras pautas essenciais não fossem renegadas a um segundo
plano. “É um ponto de difícil compreensão”, diz sobre a economia, e completa:
“eu queria ser uma candidata que fosse levada a sério justamente por tocar nos
temas centrais dos rumos do país, e ao ser levada a sério, também fazer com que
essa pauta LGBT fosse levada a sério”. Se Luciana conseguiu seriedade em seu
discurso? A repercussão positiva que ela teve, principalmente junto a um
eleitorado mais jovem e politizado, mostra que sim. “Se eu acabasse sendo uma
candidata caricata, como foi o Eduardo Jorge, por exemplo, essa pauta não teria
sido levada com seriedade”, e conclui afirmando estar feliz por achar que
conseguiu “fazer uma boa combinação entre não deixar essas pautas
secundarizadas totalmente, ao mesmo tempo, conseguir colocar no centro da fala
a disputa pelos rumos do país.”
O café
chega à mesa, dou uma pausa no que aconteceu antes e durante a campanha para
olharmos para o futuro. Minha pergunta parece gerar um pouco de desconforto ao
tocar nos nomes de Dilma, Aécio e Marina Silva chamando-os de “principais”.
Logo, corrijo para “candidatos mais evidenciados pela mídia” e continuo com a
conversa. Quero saber o que Luciana espera nos próximos quatro anos em relação
aos direitos LGBT, já que Dilma levantou a bandeira no segundo turno, o PSDB de
Aécio se posicionou a favor das pautas e, por fim, Marina ficou em maus lençóis
por rever em menos de 24 horas o seu plano de governo recém-divulgado. “Eu vejo
que o cenário será positivo à medida que nós tivermos pressão de fora para dentro
do governo e do parlamento”. Ela faz uma pausa, agora adota um ar mais sério se
referindo ao atual governo reeleito, lembrando que Dilma permitiu a suspensão
do Programa de Combate à Homofobia nas escolas e do abandono da Comissão de
Direitos Humanos pelo PT, deixando que fosse assumido por Feliciano. “O que se
fala nem sempre é o que se faz, o critério da verdade é a prática, e não
o discurso.”
Se posicionar a favor das minorias é parte de uma luta
mais ampla pela democracia
Ainda
sobre, ela ressalta que “embora seja inegável que o PT tenha uma história de
defesa das pautas LGBTs, uma coisa são as posições assumidas pelo partido,
outra é a prática que ele tem no governo”, e volta a assumir um tom mais
positivo ao dizer que a campanha eleitoral “ajudou a dar um gás ainda maior
para o movimento LGBT e para a luta.”
O PSOL
acabou se tornando um partido símbolo da luta LGBT, seja através do
posicionamento da própria durante os debates, seja pelo deputado Jean Wyllys,
que mesmo apoiando Dilma no segundo turno, se mostra firme em continuar
mantendo a discussão em evidência. Pra quem vê de fora, é algo que parece estar
em sintonia dentro do partido, ou, pelo menos, uma questão que precisa ser
importante para a esquerda, já que se posicionar a favor das minorias é parte
de uma luta mais ampla pela democracia. Querendo ou não, 2014 surge como um ano
importante para os homossexuais. “O potencial que nós temos de organizar um
número enorme de militantes da causa é muito maior agora depois da
campanha”, frisa.
Se
lutar pelas minorias é uma pauta importante da esquerda, a polarização que
tomou conta do país durante a disputa do segundo turno deixou claro que
entramos em uma nova fase política. Diante da vitória de Dilma, reações
violentas, principalmente através de discursos de ódio e xenofóbicos, fervilham
entre os eleitores de Aécio Neves. Os discursos da direita e da esquerda
estarão cada vez mais evidenciados, atingindo a todos os setores da sociedade,
inclusive o movimento LGBT.
Ninguém
está isolado do contexto da sociedade capitalista, e todos estão sujeitos às
influências dos aparelhos ideológicos do sistema, isso talvez explique porque
um gay, mesmo sendo escorraçado socialmente dia após dia, compra o discurso
social vigente e não consegue enxergar na esquerda uma forma de lutar por uma
sociedade mais justa e democrática. “A igreja, a grande mídia principalmente, a
família, a escola” são as principais ferramentas de manutenção do status quo
pelo sistema. “A ideologia dominante, acaba sendo sempre a ideologia
transmitida por esses aparelhos ideológicos, que é a ideologia burguesa, a
ideologia pró-capitalista e, portanto, de direita.”
Para
exemplificar, a gaúcha se lembra de um encontro que teve com um simpatizante.
“Encontrei esses dias aqui em São Paulo um rapaz que me disse: ‘Eu não votei em
ti, mas eu te admiro, muito obrigado por tudo que tu fez! Eu sou de direita mas
eu gosto da tua pauta. Eu gosto de ti porque tu nos defendeu, eu sou gay. E
também gosto do imposto sobre as grandes fortunas.’ Daí eu: ‘Mas então tu é de
esquerda e tu não sabes!”, lembra rindo. “As pessoas às vezes se atrapalham um
pouco com esses rótulos.”
É na sombra de uma esquerda que abandonou as suas
bandeiras que a direita cresce
Por
que esse balaio ficou todo misturado no Brasil, a ponto de alguém compartilhar
mais pensamentos com a esquerda, e mesmo assim se declarar de direita? A
resposta poderia estar na própria esquerda, que há pouco mais de uma década
governa o país, e estará à frente por mais quatro anos. “O que eu vejo é que o
papel que o PT cumpriu nos últimos anos foi muito nefasto e acabou fortalecendo
a direita,” explica Luciana. Se lembrarmos das manifestações de junho do ano
passado, conseguimos ver claramente esse cenário. O que começou como um chamado
do movimento Passe Livre, acabou tomado por uma onda reacionária, baseada no
discurso da ausência de partido e de movimentos sociais organizados. Aquele PT,
que nos anos 1990 foi protagonista em grandes marchas sociais e tinha um bom
relacionamento junto às camadas mais populares e às minorias, se esquivou
quando virou situação e deixou de lado pautas importantes em nome da
governabilidade. “É na sombra de uma esquerda que abandonou as suas bandeiras
que a direita cresce.”
Muitos
militantes de esquerda e pessoas à margem da sociedade se decepcionaram com o
PT, isso é fato. No caso do movimento LGBT, a falta de representatividade
política e um certo descaso dos governos Lula e Dilma, resultou na busca de
alternativas. Afinal, se há um crescimento e fortalecimento do discurso
conservador tomado como bandeira por figuras vis, porém importantes no cenário
nacional, para algum lugar essas pessoas terão que correr para se sentirem,
minimamente, acolhidas. E elas acabam “encontrando a direita, encontrando o
Aécio. Por isso que o grande desafio do PSOL é conseguir ser visto como uma
alternativa real de poder à esquerda do PT”, pondera Luciana.
Genro
ficou em quarto lugar na disputa presidencial deste ano, e não seria presunção
nenhuma afirmar que ela foi a maior surpresa das eleições. Estaria Luciana
começando uma nova jornada política e cravando o seu nome como um grande
expoente da esquerda brasileira? Mesmo com 1,6% dos votos no primeiro turno –
0,6 pontos acima do que as pesquisas haviam estimado, e 75% menos votos que
Heloisa Helena obteve em 2006 – o PSOL saiu mais fortalecido como representante
da esquerda e com mais oportunidades. “A situação política hoje é mais
favorável ao PSOL do que foi no Plínio”, diz se referindo ao cenário pós-2010.
Já em 2006, com Heloísa, a situação era outra. No caso dela, “tinha duas
características que eram o recente acontecimento do Mensalão, o PT estava muito
desgastado, e a Heloísa era uma figura já muito conhecida”. Em 2014, tivemos um
cenário mais favorável para uma candidatura de contestação e uma figura nova no
cenário nacional, e Luciana chegou e cumpriu o requisito.
Ao
contrário de outras figuras que tentaram se apresentar como líderes de uma nova
política nos últimos anos, com Luciana Genro temos a sensação que tudo o que
ela diz é sincero. Não é um discurso vazio feito em um gerador de citações
aleatórias para ganhar votos de gregos e troianos, tampouco palavras
sustentadas em cima de uma postura arrogante como se ela fosse a salvadora da
pátria. É um discurso profundo, porque precisa ir nas entranhas da sociedade
para ser construído, porém humanizado e de fácil assimilação. Luciana não usou
a pauta LGBT para posar de politicamente correta, ela falou com o seu próprio
coração, o que explica porque algumas novas portas foram abertas para ela e
para o PSOL em tantos outros segmentos da sociedade. “Isso é muito importante
numa campanha, é lidar com as emoções das pessoas e conseguir criar algum tipo
de identidade com elas”, conclui.
FONTE
:http://vestiario.org/2014/11/19/a-luciana-genro-e-nossa/
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