Primeiras dez denúncias não incluem apuração contra deputados, que têm foro privilegiado
Um golpe que causou rombo de R$ 2 milhões aos cofres da Câmara dos Deputados começa a ser processado na Justiça. Na semana passada, o Ministério Público Federal abriu dez denúncias criminais contra 20 pessoas acusadas de peculato, estelionato e lavagem de dinheiro no chamado “golpe da creche”, esquema de contratação de funcionários fantasmas e fraudes no auxílio-creche e vale-transporte do Congresso. Apesar do volume de denunciados, as investigações não terminaram. No Supremo Tribunal Federal, ainda corre um inquérito para apurar se o deputado Sandro Mabel (PMDB-GO) participou ou não do esquema – ele nega. Além disso, os desvios no vale-transporte não estão nessa primeira leva de denúncias.
O golpe da creche foi revelado pelo Congresso em Foco em 2009. Nas primeiras denúncias, o procurador Bruno Calabrich apresentou acusações que, em comum, mostram que os chefes da fraude são o ex-motorista de Mabel Francisco José Feijão de Araújo, o Franzé, e sua esposa, Abigail Pereira da Silva, ex-servidora do então deputado Raymundo Veloso (PMDB-BA).
Como mostrou este site no domingo (9), Veloso foi denunciado por peculato pela contratação de um cantor sertanejo fantasma. O músico Igor, ou Zenon Vaz, combinou de receber R$ 800 por mês e o restante dos R$ 3.400 ficava com Franzé, que montou a operação, segundo a acusação. A nomeação do cantor, porém, foi assinada pelo ex-deputado Veloso, que afirma ser inocente no caso.
Mabel, que não prestou novos esclarecimentos ao site na semana passada, afirma ser vítima de Franzé. E exibe a seu favor laudo da Polícia Federal mostrando que somente uma assinatura sua não foi falsificada nos registros funcionais dos servidores fantasmas.
Até mesmo por ter foro privilegiado, Mabel não está entre os denunciados no conjunto de ações da Procuradoria da República no Distrito Federal. Hoje, ele é investigado pela Procuradoria-Geral da República em inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF).
Pessoas pobres
A contratação do músico não foi a única ação curiosa do esquema. Uma faxineira desempregada e um pasteleiro da periferia do Distrito Federal também se tornaram funcionários fantasmas da Câmara. Com uma diferença em relação ao sertanejo: o Ministério Público afirma que eles foram enganados pelo ex-motorista de Mabel e não sabiam das fraudes. “Tratava-se de pessoas pobres, com baixa escolaridade, que trabalhavam no mercado informal e tinham pelo menos dois filhos”, afirma o procurador Bruno Calabrich, em uma da dez denúncias.
Em entrevistas ao Congresso em Foco no passado, o pasteleiro Severino Lourenço e a faxineira Márcia Flávia Silveira (nome fictício) disseram que entregaram os documentos seus e de seus filhos por pensarem que receberiam um Bolsa Família. O grupo repassava a eles de R$ 200 a R$ 300 por mês, mas embolsava o restante dos salários, que passavam dos R$ 3.500 mensais.
Márcia Flávia, moradora de Valparaíso, no Entorno do Distrito Federal, se interessou pela proposta de Franzé. Mãe de quatro filhos, ela estava desempregada, vivendo apenas com o salário do marido, o auxiliar de serviços gerais Aluísio Leonardo (nome fictício). “Como eu estava necessitando, eu caí nessa, pensando que ia ter uma boa ajuda. Até que foi uma boa ajuda, mas descobri que eu entrei numa cilada”, disse ela à reportagem, quando o site revelou o esquema.
O procurador confirma. Em uma das denúncias à 10ª Vara, Calabrich diz que Severino e Márcia são pessoas “que foram ‘usadas’ para a prática dos crimes e que foram levadas a acreditar que estavam recebendo apenas um ‘benefício governamental’”.
O salário total de Márcia, com os benefícios, era de mais de R$ 3.500 por mês – quase tudo ficava com o grupo criminoso. No caso do pasteleiro Severino, os rendimentos totais chegaram a R$ 7 mil por mês. A conta bancária dele, operada por Franzé, foi usada para pagar pessoas ligadas a Mabel. Por causa disso, o Ministério Público pede a condenação de Franzé por lavagem de dinheiro.
Em proveito próprio ou de outros
Segundo Calabrich, no caso da faxineira Márcia, o seu salário foi tomado por Franzé, Abigail, a chefe de gabinete de Mabel, Maria Solange Lima, e os supostos servidores Eliane Lourenço e Cláudio Sidney Camargo, o Cauí. De acordo com o Ministério Público, eles fizeram isso “em proveito próprio ou alheio”.
Solange Lima disse nunca ter visto Márcia Flávia no gabinete, mas era ela quem atestava a frequência dos funcionários, de acordo com Calabrich. Em depoimento, a chefe de gabinete contou que Franzé “lhe disse que os funcionários que ela não conhecia na frequência foram contratados com autorização do deputado, mas não confirmou com o deputado essa informação”.
Apesar disso, Solange colaborou com as investigações. Por isso, o Ministério Público no Distrito Federal acusou-a de peculato, mas também pediu à 10ª Vara Federal que lhe estenda os benefícios da delação premiada. Se a Justiça aceitar o pedido, ela pode ter sua pena reduzida ou mesmo ser absolvida ao final do processo.
Modalidades
O golpe da creche foi feito com várias modalidades. De forma combinadas ou separada, as fraudes envolviam a contratação de fantasmas – uns cientes disso e outros iludidos para receber “benefícios sociais” – e também desvios nos benefícios do auxílio-creche e do vale-transporte da Câmara, que são pagos em dinheiro.
Nas denúncias apresentadas à Justiça, Franzé participa de todos os casos. Não foi possível considerá-lo chefe de quadrilha porque a legislação da época dos fatos só considera esse crime quando quatro ou mais pessoas se associam de maneira permanente.
Como as dez denúncias do Ministério Público não tratam dos desvios no vale-transporte, os prejuízos apurados ainda não totalizam os R$ 2 milhões observados pelos investigadores anos atrás. Nas contas do MPF, o prejuízo é de, pelo menos, R$ 545 mil, porque nem todos os valores foram totalmente levantados ou atualizados monetariamente pela Procuradoria. Segundo cálculos do Congresso em Foco com base na inflação oficial no período, isso poderia elevar a contabilidade dos prejuízos a mais de R$ 650 mil apenas em relação aos vinte primeiros réus denunciados.
do JHRN
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