domingo, 25 de agosto de 2013

'Vem chumbo grosso', diz jornalista que namora brasileiro detido em Londres

Verão de 2004. Estressado com a defesa de uma causa, o advogado Glenn Greenwald, hoje com 46 anos, formado em direito pela Universidade de Nova York, decide tirar férias e parte de Manhattan rumo ao Rio de Janeiro. Apenas um dia depois de sua chegada, já nas areias de Ipanema, altura da rua Farme de Amoedo, a bola do futevôlei passa perto da cadeira de praia em que está sentado e quase derruba o seu drinque.
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Quem aparece para buscá-la e se desculpar é David Miranda, então com 19 anos. Naquela altura, ele não tinha o segundo grau completo. Perdera a mãe aos 5 anos (o pai ele não conheceu). E decidira abandonar aos 15 a casa onde foi criado pela tia, na favela do Jacarezinho, na zona norte, para tentar a vida. Trabalhou como entregador de panfleto, faxineiro, engraxate, office boy e gerente de uma casa lotérica.
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Depois de uma semana, já moravam juntos. Greenwald decide abandonar o direito e se arrisca em um blog. David tenta colaborar com a renda abrindo uma empresa de guias turísticos para gays americanos. "A gente se completa", confidencia ele ao repórter Morris Kachani.
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Eles hoje vivem em uma casa nas bordas da floresta da Tijuca, com dez cachorros adotados e um gato. Há poucos móveis. É essa a atmosfera de trabalho de Greenwald, que se tornou mundialmente conhecido como o colunista que denunciou os abusos de um sistema de espionagem montado pelo governo americano, envolvendo a violação de dados individuais.
Ele acorda por volta das 5h. Muitas vezes trabalha de bermuda e chinelos até as 11h, geralmente em frente ao computador. É quando sai para jogar tênis, regressando por volta das 14h para novamente trabalhar até as 20h.
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"Glenn não tem noção de direção, eu tenho o GPS na cabeça", exemplifica Miranda, que também é quem cozinha. Os dois compartilham um gosto por Nietzsche. Assistem a "Breaking Bad", série de TV americana. Greenwald prefere os rappers. Miranda, tecno e trance.
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O brasileiro fez supletivo. Fala um inglês fluente. Gosta de ser chamado de "Deivid", e não "David". Não estudou o idioma e brinca que aprendeu jogando videogame. Está na reta final de um curso de graduação em marketing pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e administra a agenda do parceiro. Greenwald gosta de consultá-lo sobre os artigos que escreve.
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No domingo passado, Miranda foi detido pela polícia britânica no aeroporto de Londres. Submetido a interrogatório e a constrangimentos, teve um celular, um computador e pen drives apreendidos, no que se transformou em um escândalo internacional. Vinha de Berlim, de um encontro com Laura Poitras. Documentarista, ela já denunciou em seus filmes arbitrariedades dos EUA na prisão de Guantánamo e em Bagdá. Prepara-se agora para lançar um trabalho sobre espionagem eletrônica. Já foi detida por mais de 40 vezes, de acordo com artigo recente do "The New York Times".
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Em junho, ela esteve com Greenwald em Hong Kong, na derradeira sequência de encontros com Edward Snowden, ex-funcionário da agência de segurança americana NSA que lhes forneceu os arquivos que serviriam como base para a denúncia que logo ganharia as manchetes do mundo inteiro.
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Greenwald garante que apenas uma parte ínfima do material foi divulgada e que vem muito chumbo grosso por aí. "A internet pode ir para uma direção ou outra: ou serve como instrumento para fortalecer a democracia, ou o oposto, se transformando em ferramenta para o controle da população. É contra isso que luto", afirma.
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Ele fez um "curso básico" com Snowden sobre medidas de segurança, para não correr riscos. Foram cinco horas diárias por uma semana sobre e-mails criptografados, proteção no envio de documentos, chats sem detecção, como navegar anonimamente. Aprendeu a guardar o celular na geladeira, sem a bateria, para não ser rastreado nas cidades do mundo em que desembarcar para trabalhar. O aparelho pode ser transformado em GPS ou microfone por arapongas, mesmo que eles estejam distantes de seus alvos.
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Por essas e outras, duvida que as autoridades britânicas ou americanas conseguirão ter acesso aos dados do material apreendido com Miranda. Além do mais, trata-se de cópias.
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Segundo Greenwald, 80% dos dados da internet viajam por fibras óticas atravessando os EUA, o que facilita o acesso a eles. Skype e Microsoft lideram o ranking de vulnerabilidade. Twitter e Yahoo! estão na outra ponta. Todos foram obrigados por lei a ceder dados à agência de espionagem americana, mas uns resistiriam mais que outros.
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Greenwald acredita que os vazamentos serão cada vez mais frequentes. "O sistema de espionagem conta com 25 mil funcionários diretos e 50 mil prestadores de serviço. É impossível proteger segredos, ainda mais na era digital." São dois bilhões de e-mails e dois bilhões de telefonemas capturados diariamente pelos EUA, segundo conta.
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O problema é dissecá-los. "Estudos mostram que o serviço de espionagem colheu evidências suficientes sobre o 11 de Setembro, antes do atentado. Mas as fontes eram diversificadas e não se comunicavam. Ou seja, eles podem descobrir muitas coisas, mas não o que querem."
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Ele segue: "Não queremos destruir a capacidade do Estado, mas o público deve saber -e decidir- quais são as formas de espionagem aceitáveis. O Estado tem direito de espionar, mas os limites precisam ser discutidos".
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Greenwald hoje mantém um blog e uma coluna no jornal britânico "The Guardian", e está escrevendo seu quinto livro. "Tenho total independência no que faço e no que escrevo. Claro que preciso de uma instituição para financiar meu trabalho. Ela é responsável por 50% dos meus ganhos. Os outros 50% me chegam por meio de um evento de doação que organizo anualmente pela internet."
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Ele apoiou a candidatura de Barack Obama à presidência em 2008. Hoje, considera seu governo "quase igual" ao do antecessor, George W. Bush. "Os EUA não são o país mais livre do mundo. Comparada com vários países europeus, a democracia americana é mais fraca."
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A condenação de Bradley Manning, o militar que vazou informações ao WikiLeaks, a 35 anos de prisão, foi "totalmente horrível", para Greenwald. "Ele mostrou muitos crimes [como militares americanos matando jornalistas no Iraque do alto de um helicóptero]. Ninguém foi processado, só quem os divulgou. Ele não machucou ninguém. Isso dá vergonha."
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Ele aprova a reação do governo brasileiro à detenção de Miranda: "Funcionários do alto escalão me ligam a cada 20 minutos para saber se há alguma novidade. Eles estão colocando pressão sobre o governo inglês".
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A perspectiva de voltar a morar nos EUA ainda está em seu horizonte. Hoje a legislação americana autoriza a concessão de visto de residência para Miranda como seu parceiro. O problema é outro: "Pretendo viajar para lá e conversar com o governo sobre minha atividade profissional, no sentido de poder praticá-la com a mesma liberdade que tenho no Brasil"

fonte: FOLHA.COM

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